quarta-feira, 7 de outubro de 2015

LAUDATO SI (III)

                                   
“Dizia São Boaventura que, através da reconciliação universal com todas as criaturas, Francisco voltara de alguma forma ao estado de inocência original. Longe desse modelo, o pecado manifesta-se hoje, com toda a sua força de destruição, nas guerras, nas várias formas de violência e abuso, no abandono dos mais frágeis, nos ataques contra a natureza”. (Laudato Si, nº 66, pg. 55 – edições Paulinas).
Tão apropriado esse trecho, praticamente abrindo o Capítulo II, da Encíclica Laudato Si, capítulo que se intitula: “Evangelho da Criação”.
Sim, “a Boa Nova” (=Evangelho) é também saber que, com todas as criaturas, tal nós também o somos, formamos a vida em integração contínua, por isso que a leitura da passagem do Gênesis a propósito da Palavra de Deus: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão” (Gn 1, 28 tradução da Bíblia da CNBB), não pode ser leitura fundamentalista da supremacia prepotente da mulher e do homem sobre os demais seres da natureza, mas leitura que promova a incessante comunhão no “sentir-se reconciliado” e, assim, sem divisões ou inimizades, sentir a paz como expressão da inocência.
Sentir-se em paz é sentir-se acolhido e integrado.
É o que a vida nos pede: acolher e integrar todos e tudo.
Então, diz muito bem o Papa Francisco:
“A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses”. (Laudato Si, nº 75, pg. 62 – edições Paulinas).
O Deus-Amor, justo porque é pleno amor, nada impõe.
O Deus-Amor, por sua Palavra que é o Cristo Jesus – “E a Palavra se fez carne e veio morar entre nós”, do Evangelho de São João, capítulo 1, versículo 14 – tudo criou, “não do caos nem do acaso” (Laudato Si nº 77, pg. 63 – edições Paulinas), mas porque o amor não é solidão, necessariamente tem que criar e tem que se comunicar, para propor, para oferecer às suas criaturas – mulheres e homens – a vida em abundância, construída paulatinamente em atos de livre opção. Por isso, São Paulo diz aos gálatas: “É para a liberdade que Cristo nos libertou. Ficai firmes e não vos deixeis amarrar de novo ao jugo da escravidão”. (Gl 5, 1).
E a liberdade cristã, se define a mulher e o homem como seres únicos e irrepetíveis, todavia não considera a nossa unicidade e a nossa irrepetibilidade para a exaltação do egoísmo pessoal, enclausurado no self made man (=o homem feito exclusivamente por si mesmo), mas como  atributos pessoais e próprios, justamente para que assim sejam oferecidos aos demais, partilhados com os demais.
Torno às sábias palavras do Papa Francisco:
“86. O conjunto do universo, com as suas múltiplas relações, mostra melhor a riqueza inesgotável de Deus. Santo Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade provem da intenção do primeiro agente o qual quis que o que falta a cada coisa para representar a bondade divina, seja suprida pelas outras, pois a sua bondade não pode ser convenientemente representada por uma só criatura”. (Laudato Si, nº 86, pg. 70 – edições Paulinas).
Toda a atitude de açambarcar, todo comportamento de dominar, todo o conduzir-se que se centraliza no absoluto poder, no absoluto prazer, no absoluto possuir é degradante e, no nosso Brasil, o cotidiano da corrupção e do desprezo à vida, pelas mais variadas formas, é o eloquente retrato do obscurantismo porque estampa o servilismo à coisificação a ponto de alcançar a própria coisificação do ser humano.
Eu já não sou; eu compro e vendo, inclusive a mim mesmo.
Mais uma vez, o Papa Francisco:
“Deixamos de notar que alguns se arrastam em uma miséria degradante, sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer o que fazer com o que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. Na prática, continuamos a admitir que alguns se sintam mais humanos que os outros, como se tivessem nascido com maiores direitos.” (Laudato Si, nº 90/91, pgs. 74/75 – edições Paulinas).
Com toda coerência, o ensino social da Igreja católica, consolidado no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, infelizmente desconhecido por expressiva quantidade de leigos e religiosos católicos – se o lessem e o pusessem em prática, certamente nossa casa comum estaria em condições muito melhores – enfatiza o princípio do bem comum como um dos seus pilares na construção de sociedade verdadeiramente humanista.
Pelo princípio do bem comum: “a responsabilidade de perseguir o bem comum compete não só às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, pois o bem comum é a razão de ser da autoridade política”. (Compêndio da Doutrina Social da Igreja nº 168 – pg. 103).

No Brasil, e já há bom tempo, quão longe estão nossos representantes políticos desse fundamental ensinamento. Nós, e está em nossas mãos, pelo contínuo exercício da participação política consciente, devemos exercer a cidadania ativa porque, se não o fizermos, os que nos representam sentir-se-ão como nossos senhores, e não o são. Aqui, o tema é vasto e propiciaria novo artigo, mas para que eu próprio não incida na crítica que faço ao imobilismo de nossa cidadania, a vocês, amigas e amigos leitores, nos espaços de atuação de cada qual, eu proponho que nos engajemos na adoção de primeira, e concreta, medida: que todos nos irmanemos pelo fim da reeleição em todos os níveis – municipal, estadual e federal – e pelo fim da sucessão familiar de quem foi eleito para um único mandato.