Prosseguindo em nossas reflexões
sobre essa fundamental Carta Encíclica do Papa Francisco, seu Capítulo I
aborda: “o que está acontecendo com nossa casa”.
Marcando que nosso tempo é tempo
acelerado – rapidación é o termo em
espanhol de que se vale Francisco –
diz, com propriedade, o Papa:
“... os objetivos desta mudança rápida e constante não estão
necessariamente orientados para o bem comum e para um desenvolvimento humano
sustentável e integral. A mudança é algo desejável, mas torna-se preocupante
quando se transforma em deterioração do mundo e da qualidade de vida de grande
parte da humanidade”. (LS nº 19 – pg. 17/18).
A exasperação
tecnológico-financeira arvora-se na solução única dos problemas.
Ledo engano porque esse
comportar-se reducionista e unilateral menospreza a compreensão da pluralidade,
da interação das múltiplas e variadas relações, que só no encontro do que é
diverso propicia o sentir e conhecer a harmonia a que a nossa casa,
verdadeiramente, se faça a casa comum.
Diz bem Francisco:
“Produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de
resíduos, muitos deles não biodegradáveis: resíduos domésticos e comerciais,
detritos de demolições, resíduos clínicos, eletrônicos e industriais, resíduos
altamente tóxicos e radioativos. A terra, nossa casa, parece transformar-se
cada vez mais num imenso depósito de
lixo”. (LS nº 21 – pg. 19).
A ótica da quantidade
desproporcional, pretensamente justificada pela acessibilidade para tantas e
tantos, efetivamente mascara o desejo voraz de produzir e consumir
incessantemente de modo que tudo conflua para essa espiral de troca contínua de
coisas, e assim também todos nós nos
coisificamos, naturalmente.
Elucidativa passagem do
Papa Francisco, a propósito:
“Mas, contemplando o mundo, damo-nos conta de que este nível
de intervenção humana, muitas vezes a
serviço do sistema financeiro e do consumismo, faz com que essa terra onde
vivemos se torne realmente menos rica e bela, cada vez mais limitada e
cinzenta, enquanto ao mesmo tempo o desenvolvimento da tecnologia e das ofertas
de consumo continua a avançar sem limite. Assim, parece que nos iludimos de
poder substituir uma beleza irreparável e irrecuperável por outra criada por
nós.” (LS nº 34 – pg. 30).
A intensa massificação
não pode significar o aniquilamento do eu; não pode significar a perda da
identidade pessoal, cultural, religiosa.
O discurso de São Paulo,
no Areópago ateniense, manifestando o Deus-Amor como princípio e fim de todos e
de tudo – “tendo estabelecido o ritmo dos tempos e os limites de sua (= da
espécie humana) habitação (Atos dos Apóstolos 17, 26) – enfatiza a plena
comunhão na formação do nós a partir e como fruto do existir de cada qual. Diz,
então, São Paulo:
“Assim se fez para que buscassem a Deus e, talvez às
apalpadelas, o encontrassem a ele que, na realidade, não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos,
nos movemos e existimos, como disseram alguns dentre vossos poetas”. (Atos dos
Apóstolos 17, 27-28).
Francisco, também:
“Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser
reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros.
(LS nº 42 – pg. 34).
Sou, para que todos sejamos.
Não podemos aceitar que
nos considerem como números, que nos manipulem, que nos tenham como massa de
manobra.
O Papa Francisco
ensina-nos em trecho tão marcante e perfeito da “Laudato Si”:
“A isto vem juntar-se as dinâmicas dos mass media e do mundo digital, que, quando se tornam onipresentes, não favorecem o desenvolvimento de
uma capacidade de viver com sabedoria, pensar em profundidade, amar com
generosidade. Neste contexto, os grandes sábios do passado correriam o risco de
ver sufocada a sua sabedoria no meio do ruído dispersivo da informação. Isto
exige de nós um esforço para que esses meios se traduzam num novo
desenvolvimento cultural da humanidade, e não em uma deterioração da sua
riqueza mais profunda. A verdadeira
sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as
pessoas, não se adquire com uma mera acumulação de dados, que, em uma espécie
de poluição mental, acabam por saturar e confundir. (EG nº 47 – pg. 36/37).
O
arremate, como o ponto central desse Capítulo I da Carta Encíclica “Laudato
Si”, está em que não se pode dissociar da abordagem ecológica a abordagem social.
“Mas, hoje, não podemos deixar de
reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem
social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o
clamor dos pobres. (LS nº 49 – pg. 39).
E o
Papa Francisco apresenta o testemunho dos bispos da Patagônia-Comahue,
testemunho veraz e concreto, que retrata cenário eloquente nas áreas
subdesenvolvidas, ou em desenvolvimento, no mundo inteiro:
“Constatamos frequentemente que as
empresas que assim procedem são
multinacionais, que fazem aqui o que não lhes é permitido em países
desenvolvidos ou do chamado primeiro mundo. Geralmente, quando cessam suas
atividades e se retiram, deixam grandes danos humanos e ambientais, como o
desemprego, aldeias sem vida, esgotamento de algumas reservas naturais,
desflorestamento, empobrecimento da agricultura e pecuária local, crateras,
colinas devastadas, rios poluídos e algumas poucas obras sociais que já não se
podem sustentar”. (LS nº 51 – pg. 42)
Está
saturado esse modelo centrado no exclusivismo do mercado financeiro, que tem
como primado o economicismo tecnocrata e tecnológico.
Encerro
com palavras exatas do Papa Francisco:
“Há regiões que já se encontram
particularmente em risco e, prescindindo de qualquer previsão catastrófica, o certo é que o
atual sistema mundial é insustentável a partir de vários pontos de vista,
porque deixamos de pensar nas finalidades da ação humana. Se o olhar percorre as regiões do nosso planeta, percebemos depressa
que a humanidade frustrou a expectativa divina”. (LS nº 61 – pg. 49/50).