Tantas e tantos opõem carnaval à quaresma.
Eu não penso assim.
Essa dualidade em contraste, em
dicotomia irredutível, é herança, presente e forte até hoje, da concepção
platônica, que ensejou e motivou tantas outras concepções, no mesmo sentido
fundante, que contrapõe corpo e espírito, mais das vezes satanizando o corpo.
O corpo é divino.
Assim não fosse, e Deus não se teria
dele valido – “e o Verbo se fez carne” – para, corporalmente, se revelar e se
comunicar a nós, suas filhas e seus filhos, por Ele tão amados, por isso que
habitou entre nós, assumindo nossa condição humana: não nos deixou na solidão,
nos consagrou em dignidade.
A complementaridade, só possível na
heterogeneidade do corpo feminino e do corpo masculino, é o princípio da vida,
síntese do encontro da mulher e do homem, no que deve ser a totalidade de cada
um para a livre e consciente união conjugal: a entrega-doação.
Por isso, a celebração do carnaval na
alegria espontânea, cordial (= de
coração ), fraterna é alegria saudável.
Lamentavelmente, o que é para ser
carnaval, alegria espontânea, cordial (= de coração), fraterna, em tantas e
tantas situações descamba para o agressivo, o grosseiro, o desrespeitoso, o
aviltamento do próprio corpo, assumido como mercadoria exposta para o consumo
fugaz.
Eis porque o corpo não pode ser
absolutizado.
É limitado e a certeza de seu próprio
limite é o fato, inexorável, da morte corporal: “tu és pó e ao pó tornarás”.
Vem-nos, então, em festejo seguinte:
a quaresma.
A quaresma não como condenação do
carnaval, não como expiação corporal.
A quaresma como abertura e vivência
para o espírito, que somos.
Mulheres e homens somos os únicos seres
capazes de Deus porque somos os únicos seres capazes de transcender, ou seja,
de nos “movimentarmos para o alto” (= trans ascendere ), vale dizer: de
sairmos de nós mesmos para a vida em comunhão fraterna, em missionariedade
orante, não simplesmente militante, em discipulado que busca caminhar sempre
como Jesus caminhou, apesar das limitações e fadigas de cada um de nós. Não
desistir; persistir e caminhar sempre.
A quaresma é pausa necessária – jejum (= o conhecimento profundo de si
mesmo); esmola (= solidariedade
concreta e permanente com todos os que de solidariedade precisam); e oração (= diálogo, com ou sem fórmulas,
com Deus) – sem a qual, certamente, no caminho nos perderíamos, ou dele
desistiríamos.
Eis porque a quaresma não é simples
período de tempo, posto no calendário, em sucessão ao carnaval.
A quaresma santifica o carnaval, sadiamente festejado, prolongando-o em
outra dimensão.