quarta-feira, 5 de março de 2014

A propósito da Anistia

                                          

Posicionamentos dos que juridicamente viabilizam a lei de anistia – Lei nº6683/1979 – centram-se, em causa subjacente a toda a linha de argumentação desenvolvida, no ter-se constituído dito diploma legal em fórmula adequada ao apaziguamento da sociedade brasileira, e que sua desconstituição – até porque a revelar pacto político selado há tantos anos e importante à sua época – óbice encontraria no exaurimento do texto normativo, assim consolidado, e também na proibição da retroatividade penal.
No pórtico de apresentação da Constituição federal de 1988, o Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, disse-a:
“É a Constituição Coragem.
Andou, imaginou, inovou, ouviu, viu, destroçou tabus, tomou partido dos que se salvam pela lei.
A Constituição durará com a Democracia e só com a Democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça.”
Pois a Constituição Coragem, no artigo 5º, inciso XLIV, é textual:
XLIV – “constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”.
Esse preceito constitucional é claro: todas as condutas praticadas por grupos armados de civis ou militares que afrontem a ordem constitucional e o Estado Democrático são crimes, observada a prévia definição das mesmas na legislação penal, codificada ou não, em vigor ao tempo de sua prática, na exata observância do disposto no inciso XXXIX, do mesmo artigo 5º e, quando cometidas no contexto desse cenário – “contra a ordem constitucional e o Estado Democrático – tornam-se inafiançáveis e imprescritíveis.
Assim, de nenhuma valia dizer-se que a lei de anistia cristalizou pacto político, então exaurido em seus efeitos e, portanto, imutável.
É injurídica tal colocação.
A Constituição Federal de 1988, a Constituição Coragem, não recepciona a lei de anistia. Não recepciona a lei de anistia porque se revelando a Carta Magna como a expressão jurídica suprema empenhadamente motivada e calcada na afirmação e preservação da Democracia, por certo e por óbvio não poderia incorporar, validando, texto de lei ordinária, que frontalmente desrespeita esse seu maior propósito.
É de se considerar que quando a própria Constituição federal quer conceder eficácia contida a preceitos seus vale-se ora da expressão “nos termos da lei”, ora da expressão “a lei”, como exatamente fez nos dois incisos anteriores – XLII e XLIII – a tratar da inafiançabilidade e da imprescritibilidade do crime de racismo – inciso XLII – e da inafiançabilidade e insusceptibilidade da graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos – inciso XLIII -.
Ora, no inciso XLIV o texto constitucional é direto e incisivo: constituem-se em crime inafiançável e imprescritível as condutas criminosas, já presentes na legislação penal à época em que foram realizadas, sempre que perpetradas por grupos armados de civis e militares e assumidas contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Esse inciso, por manifesto, não pode ser interpretado como a exigir seja inserido no Código Penal tipo, cujo “nomen iuris” seria: “agir contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”. Aliás, a vastidão e generalidade dessa definição comprometeriam, sem qualquer margem para a dúvida, a exigência do princípio da tipicidade criminal estrita, corolário imprescindível do processo judicial democrático.
É de se louvar, por tudo quanto até aqui se disse, o comportamento de Procuradoras e Procuradores da República e do próprio Procurador geral da República, Dr. Rodrigo Janot Monteiro de Barros, posicionando-se claramente sobre a imprescritibilidade e a não incidência da lei de anistia sobre as condutas criminosas executadas pelos agentes públicos do Estado ditatorial, até porque o artigo 127 da Constituição federal diz ser dever do Ministério Público, como instituição permanente da Sociedade brasileira, defender: “a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.”
A Constituição Coragem assim o é porque não teme arrostar o passado para não permitir que jamais se faça presente; porque não teme iluminar continuadamente a escuridão, cúmplice do silêncio, para não permitir que jamais se olvide e, então, se conheça, em toda a sua extensão, observando-se sempre os ditames do devido processo legal, o grau de responsabilidade dos civis e militares, que agiram, criminosamente, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático porque tais condutas são inafiançáveis, tais condutas são imprescritíveis.
    
                                                                                                                                          

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